sábado, maio 04, 2013

O que a verdadeira "imprensa" escreveu sobre o concerto dos Cavalaria 77/ Clockwork Boys na associação Fantasma Lusitano.

Grande Barracal Lusitano:
 

É comum, dentro daquilo a que se chama “rock”, seus derivados e demais movimentos, de aludir ao problema do envelhecimento, seja de quem toca e/ou compõe ou da sua obra; desde o advento da própria rockalhada até ao punk, foi-se criando muito (mas não apenas) numa lógica de contrariar os “velhos”, esses entraves e opressores, que deixaria Hegel e Marx tremendamente orgulhosos. Assim, haveria que correr com as velharias – ou ignorá-las, pelo menos – e fazer fluir as novas ideias, propaladas pelos gajos cool e vanguardistas.

Também no nosso Portugal e nos nossos movimentos de cultura popular ou, mais especificamente, na música dita alternativa, há destas intermináveis lutas – sejam elas justas ou injustas. A luta dos Clockwork Boys é justa, sempre o foi, mesmo faltando por vezes motivação da banda para a levar a cabo. Este humilde escriba tentou sempre dar o seu apoio, dentro das suas limitações temporais, orçamentais e artísticas.

Porque é que é justa? Porque é a luta por um pouco de verdade dos factos, no que respeita a essa coisa mítica que é o punk. Verdade? Isso não será um bocado para o dogmático, a tender para certa rigidez de conceitos? De certa maneira, sim.

Porém, o problema do punk Português é mesmo esse: está tão desvirtuado, tão abaixo de cão, tão miserável e sem ideias, que há que voltar ao dogma de que não há preconceitos no punk e de que um pouco de purismo não faz mal a ninguém. Por purismo punk entende-se voltar a uma interpretação dos maiorais, dos Darby Crashes, G.G. Allins e afins desta vida, fugindo dos clichés pseudo-revolucionários e dos grupelhos e editoras que nada mais trazem, senão um abanar de cabeças, mas na horizontal, em desdém pela decadência a que isto chegou. Clash, not Crass. The Brats, not Exploited.

Note-se que os Clockwork Boys não rejeitam a política, num exercício anti-intelectual, para não dizer imbecil; ela está implícita nas letras. Não é preciso falar (sempre) directamente de partidos ou de revolução. A falta de felicidade na vida ou o desespero puro e duro também podem ser produto dos pulhíticos e suas decisões.

Como banda enigmática e totalmente fora do circuito “normal” do punk nacional (e ainda bem, diga-se), naturalmente que se formou um culto à sua volta, inteiramente justificado. Assim sendo, um concerto de Clockwork Boys em solo Pátrio é sempre um acontecimento, em particular se for em Lisboa, a cidade que mais inspira a banda, sem desprimor para as demais.

Desde o dia de Nossa Senhora de Fátima, em 2009 (no Musicbox) que a banda não tocava na capital, ou seja, desde a década passada que os hinos de Cobretti e companhia não ecoavam pelos edifícios e ruelas de Lisboa. Tempo demais, se me perguntarem.

Note-se que, como pseudo-historiador da banda (depois de pseudo-manager burlão), tenho a dizer que é um quase milagre este concerto ter acontecido, visto a banda ter estado em águas de bacalhau durante mais de um ano. Triunfou o jogo sobre o azeite, portanto.

Nestes quatro anos, muito mudou no panorama da tal de música alternativa, desde a morte de certas tendências até ao surgimento ou ressurgimento de outras; mais importante, nasceram associações, editoras, bandas e eventos que vale a pena frequentar ou seguir. A Fantasma Lusitano é uma delas, fazendo companhia a outros dois locais que vão safando o Bairro Alto no que ao bom gosto diz respeito, a ZDB e o Teatro do Bairro. Fora isso, quatro ou cinco bares e o resto, em matéria de poiso nocturno que não seja restaurante, é sofrível.

Honestamente, de cada vez que vê a turba de bimbos ignorantes de bebida branca na mão a dizerem baboseiras à porta de (maus) bares, de má música e ambiente, este vosso escriba lembra-se sempre de uma das razões pelas quais o punk é peça importante na sua personalidade: porque os bons exemplos daquele estimulam a diferença e a não ser carneiro. Não é beber que é mau, mas sim não ter nada na cabeça e ir para o meio da rua dizer e fazer idiotices sem motivo aparente e viver sem referências, só isso.

Chegado à zona de operações, surge um Cobretti no seu esplendor: o colete da cruz de ferro e Cobra Kai (ainda o conheci em casaco, nos tempos do concerto na Casa de Lafões!), o jogo meio garula, meio punk, e a “ozadia [sic] e alegria” típicas dos concertos; um novo pormenor, o moccasin de carteirista Italiano, uma inovação. Houve também tempo para uma confissão: de que tinha deixado o Mercedes da Merkel "mais leve".

Já vários grandes se congregavam à porta da associação, antevendo a noite, quais comentadores do pit. Ainda que recente, é uma instituição que já tem uma história considerável, fruto do dinamismo de quem por lá ordena, incluindo a figura de Jorge Bruto, absolutamente incontornável quando se fala no underground lisboeta (e não só).

Desde o começo dos Clockwork Boys, há quase uma década atrás, que a tónica foi colocada na procura de uma mitologia do bas fond, da barraca, do bigode como acessório imortal, na rua como habitat fundamental, sem esquecer o crime e dificuldades e misérias da vida, sempre com uma reflexão mais cuidada do que parece. Os tempos do “barrasco”, do cantar o mullet e bigode e das histórias do Tony Cigano assim o atestam. Estas últimas foram escritas pelo já mencionado Rodrigo Velez, ou melhor, Marion “Garulameister” Cobretti – na sua presente encarnação.

Aqui seguimos para outra parte do texto, relativa ao homem e sua obra. Obra artística e não daquelas do andaime, atenção.

Falo, pois, de uma das maiores personagens do underground lisboeta, alguém que já viveu para contar histórias, que tem as marcas e tinta no corpo para o provar e que, citando os M.A.D., já comeu o pão que o Diabo amassou e que, não obstante uns quilos a mais, não morreu por isso; é alguém que pode bem escrever sobre tatuagens sem passar por poseur das modas. Não se escreve isto porque nos une uma amizade de quase dez anos (Setembro de 2003, estava o Cobretti noutra encarnação em matéria de tribos urbanas), mas sim porque é uma constatação de factos.

Trata-se de alguém que tem a ânsia de criar e divulgar a sua obra e a de outros, de procurar a qualidade, de ser historiógrafo dessa coisa a que chamam punk. Mais um que tem uma estranha forma de vida, portanto. Muitos gozaram e gozam, mas, honestamente, os cães ladram e a caravana passa.

Não obstante o trabalho e dedicação de outros, o reconhecimento ao Cobretti é devido. Tal e qual como um Lou Reed ou um Nick Cave, estamos em presença de um camaleão: mudou o exterior (mais bandana, menos bandana), mas o interior e os princípios mantiveram-se.

Olhando para o palco, está mais do que visto que as placas de certas figuras gradas do punk nacional e sem ranço por ali não passam, sendo um santuário garula: discos de vinil de todos e mais alguns – incluindo Ray Conniff e Strauss -, cartões do Bruce Lee, estalinhos, um revólver de brincar (perdido pelo torpor alcoólico “n” vezes, chamem o McNulty), dois crucifixos, letras de canções, garrafas de Martini e de uísque. Onde mais se vê tal coisa? Numa trip de ácido da Ameixoeira, só pode.

Se as paredes da Fantasma Lusitano são um convite a revisitar a história do rock através de quem ali tem tocado, o palco dos Cavalaria 77/Clockwork Boys é isso e também uma viagem pela parafernália do garula, essa criatura mítica do bas fond, que tem no crucifixo, no roque e rola, no revólver, no bigode e no blazer branco, a sua simbologia.
O ambiente é correspondente: barulheira, feedback, caralhadas e um mestre de cerimónias apostado em marchar contra a maré de mijo, beatas, cerveja, cacos de vidro e fumo. Se a maré negra do “Prestige” tivesse sido como esta, o Cobretti dava conta dela sozinho, ao mesmo tempo que cantarola G.B.H. ao jeito garula, ou seja, com uma narsa em cima e a traduzir tudo para bom Português. O bebé continua a ser inocente!

Foi a noite de estreia da banda paralela aos Clockwork Boys, também capitaneada por Cobretti, os Cavalaria 77. As sempre presentes referências à heroína são mais um reflexo da história recente desta cidade e deste país – o cavalo é parte integrante da mitologia do bas fond, um ferimento de guerra urbana, agridoce e marcante.

Assim nos enfiaram os C77, ou melhor, meia secção de ritmo e meia secção de guitarra, ou seja, três elementos, em carrinhos de choque e barracas de farturas daquelas feitas por tarados que põem sémen na mistura; sempre rebeldes, nunca apanhados pela ASAE. Que se lixem os ensaios, que a coisa correu bem, sempre suja e de moccasin de bico no pedal do carrinho de choque. Carrinho esse que, na malha seguinte, pisaria uma mina e rebentaria com as pernas ao nosso (razoavelmente) imortal garula.

Também a Guerra do Ultramar e a ditadura do Estado Novo são parte do imaginário garulense. Desde os nossos pais até personagens conhecidas por tascos de Lisboa e do país, muitos são aqueles que levaram com estas duas baladas podres em cima. Ainda que seja redutor falar da história de Portugal assim, diz-se na mesma: a G-3 e o Deus, Pátria e Família andaram de braço dado com o garula.

Tudo isto não invalida que o refrão mais tramado da noite tenha saído directamente do Huambo (melhor cantando: “HUAMBÓ!”); desde os Kussundulola que ninguém cantava tal terra com tanta convicção.

Tudo isto, desde o cavalo e a religião, passando pelo revólver de brincar, mata; a morte é premente no garula, que nunca se esquece dos Grandes. Como tal, toda a noite foi dedicada ao saudoso Zé Litro, um vulto ajudense que passou a ter a Calçada do Éden (ou do Inferno, depende das vossas convicções) como poiso, em vez da Calçada da Ajuda. Requiem pelo Zé Litro, sempre com uma garrafa de Martini dançante e médias de Super Bock enfiadas no bolso dos presentes, que nem um Ray Gange no “Rude Boy”.

Outra homenagem, desta feita para dizer que os C77 são mais honrados do que os igualmente saudosos Eskorbuto.
Como o garula é de mão leve e amigo do alheio, os (cada vez mais irrelevantes) Exploited foram os gamados. O Cobretti dá uma de beatnik e, ao mesmo tempo que berra a letra e demais improp-, verdades, ao microfone, lê as letras, espalhadas pelo chão. A haver um Ginsberg na Ajuda, decerto que ficou orgulhoso.

Como o que é bom é para ser ouvido muitas vezes, a Cavalaria resolveu repetir o desfile, desta vez com a charanga completa, o que revolucionou o som. A segunda guitarra resultou que nem cocaína numa speedball. Novamente, volta pelos carrinhos de choque, pelas minas, pelo Salazar e pelos roubos a Exploited – gostavam de bater em mods? Pois acabam roubados pelos garulas, palhaços.
Não há cerimónia militar que não tenha uma alocução do comandante. Com umas estrelas (porno) ao ombro, o general Garulameister resolve presentar todos com uma alocução a pinocada na rua e pintar paredes – guerra garula às guerras do povo e do capital. Um dos convivas, eufórico com tanta eloquência, resolve expressar a sua alegria com o arremesso de uma garrafa de cerveja. Jogo punk sempre em altas, portanto.

Entretanto, o público amontoava-se, sala claramente pequena para tanta gandulagem, rebentou o sistema da Ticketline e tudo. O concerto mais esperado aí vinha.

Foi dito supra que as letras dos Clockwork Boys contêm mais política e profundidade do que se lhes conhece. Mantenho. Não foi dito é que, mesmo com tanta depravação, raiva, miséria e paranóia, são uma lufada de ar fresco (!) num cancioneiro de punk paupérrimo – ainda no activo, safam-se os Mata Ratos, no registo javardo uns Sadists e Eskizofrénicos e pouco mais. De certo modo, são um cruzamento entre a depressão e isolamento de uns Black Flag com a raiva dos Eskorbuto e Discharge e com o gozo de uns Germs, Eater ou Mad, com um cheirinho nas edições Killed by Death, a ginga dos Dead Boys e Radio Birdman e o cabedal de Turbonegro. Escusado será dizer, mas várias destas bandas são praticamente ostracizadas pelos punks Portugueses, vá-se lá saber porquê.

Assim se descobre parte da origem da importância dos Clockwork Boys no panorama nacional. Em terra de surdos, quem tem um ouvido operacional é Rei.

O garula é um portento de jogo e para ele a dor é coisa passageira. Assim foi dado o mote: a dor passa e o ódio fica. Se me deste um soco, mais cedo ou mais tarde levas o troco com uma soqueira das boas, pá.
O público acompanha o discurso, o Zé Abutre resolve trazer os Tunnel Rats, o Iommi e o Chandler à colação; factor de diferenciação da cambada de guitarra sempre igual e mal produzida que anda a poluir as ondas sonoras armada em roqueira. Aprendam. É uma ordem.

Notícia de última hora: o Diabo é que manda nesta merda, segundo Cobretti; segue-se uma sondagem, respondida prontamente pelos bembados.

Um velho hino Clockworkiano: “Solta a Cobra que Há em Ti”. Um refrão já clássico, acompanhado pela nova secção de ritmo – que cumpriu sem mácula – e pelos bembados, cujo sistema estava já dominado pela Santa Aliança do álcool, droga e rockalhada; o Abutre era um encantador de roqueiros. E o Cobretti? É o gajo da perrada (o garula não anda à porrada, mas sim à perrada) e da auto-comiseração – “somos uns gajos fatelas!”.

Mais vale cantar que se vive em guerra diariamente do que as revoltas e revoluções (ou melhor, revololuções) fúteis do costume. A vida como ela é, sem merdas.
Que se lixe o alinhamento, vamos à “Vida Maldita”, mas cautela, que o Cobretti vai vomitar na vossa sanita. Uma introdução e riff eficazes (por falar em eficaz, saudosos Kapataz e seus andaimes voadores), imortalizados num vídeo devasso e num documentário ainda maior. A vida é maldita, concordam os fantasmas do Juanma e do Iosu de Eskorbuto, mirando o palco a partir dos cacos de vidro e do mijo.

Havendo uns livros numa estante, decerto que haveria para lá um Céline a concordar. Sim, um pouco de presunção num texto destes fica sempre bem. Não gostam? Acham “intelectualóide”? Temos pena.

A autobiografia de “Rebeldes Tatuados” é explícita. Quem anda nestas lides, com mais ou menos dedicação, já experimentou o desprezo e a ignorância alheias; quem os tem no sítio, vai contra tudo e contra todos, ponto final. Ou então faz como eu: uma boca subtil sobre os podres da vida de quem critica, meia volta e um “então xau” para cima.

O mestre de cerimónias, endiabrado, pede sangue e, qual guia turístico das Portas de Santo Antão, fala em três línguas: Português, Umbundu e Ítalo-Camarinhês.

Tanto idioma dá jeito quando se é pirata e se anda a saquear nos Sete Mares de Carrascão. Depois do desespero da vida maldita e da revolta, os ventos trazem-nos a glória da liberdade (e de um solo fodido com graves de stoner).

Mais momentos de fazer abanar o bordel, incluindo berros ao Belenenses e a grande ode (ainda se chamou por ele, mas este N.Q.S.) a um dos grandes e talentosos putanheiros da história do futebol nacional: Fernando Chalana. Hoje um homem de meia-idade remetido ao degredo; no imaginário garula e do bas fond, um autêntico Ulisses da patareca a soldo e da odisseia pela grande área – um que não se ata ao mastro, dá com ele nas gajas. Goste-se ou não, desde os tempos da famosa transmissão na Rádio Contrabanda que este é o mais conhecido refrão dos Clockwork Boys. O Chalana é do rock’n’roll (às vezes do cock’n’roll) e mais nada há a dizer.

Um lamento: a malha do Paulinho Cascavel ter ficado de fora do alinhamento.

O interlúdio pelo estádio da queca acabou abruptamente com o regresso à filosofia garula, com (na opinião deste escriba) a melhor canção da fase pós-“Clockwork d’El Rock” (2005/2006): “Tenho o Diabo no Corpo”. A perda de ideais, o recurso à garrafa e o fatalismo da perda de felicidade marcam a malha, com brilhantismo.

Ainda sobre a colaboração com José Serra, mais uma prova de que temos uma banda ímpar, devota da história e que sabe de onde vem. Para onde vai só os santinhos da arte africana sabem. Ou então a Carris, vá.

Mais violência: facadas de feedback nos ouvidos e na noite. E uma frase emblemática: “Facadas na Noite ou levas uma bufatada [sic], caralho!”. Estava dado o mote para um riff cortante (pun intended) num circo de talhantes; o Homem reduzido à condição de assassino, de caçador de vidas e o sangue como água benta da rua.

A secção de ritmo deixaria os Motörhead orgulhosos; Cobretti recorda o marialvismo e berra um “Ai Jasus [sic]!” reminiscente de um “Pátio das Cantigas” série B.

“Nós somos tão foleiros!” – berrou o vocalista, numa narrativa (olá, Sócrates de Paris) certamente dadaísta. Recordo que o mesmo também andou pelas artes plásticas, chegando mesmo a engrupir um qualquer labrego novo-rico, vendendo obra sua como se fosse a “Noite Estrelada” de Van Gogh.

Punk que é punk é iconoclasta até contra o próprio punk, pedindo o Cobretti uns Bee Gees para animar, resvalando a coisa para o já nosso conhecido HUAMBÓ.

Como a malta gosta de perrada e de uma boa guitarrada, houve molho a rodos dos “Hooligans na Noite” – a dada altura, o único oi! existente neste país era o desta canção. Nova evocação do Zé Litro e, no fim, invasão de palco por um dos hooligans de serviço, fazendo crer, juntamente com o jogador Cobretti, que se tratava de futebol Americano.

Assim sendo, o quarterback M. Cobretti resolve fazer um grande passe (de umas cinquenta jardas) ao público e perguntar quem é que já esteve preso; uns respondem que sim e levam com acusações de que são mentirosos, outros devolvem a bola com um “AUMENTA A DOSE!” e outros, a par de Cobretti, entendem que o momento é de recordar os grandes supermercados de caviar de veia de Lisboa – sdds Casal Ventoso, Musgueira, Curraleira, Meia Laranja e por aí fora.
Nova homenagem e um aviso: a primeira a todos aqueles que acabaram a ver o sol aos quadradinhos graças aos “encantos” cavalares e o segundo aos que costumavam deixar os auto-rádios nos respectivos veículos – “Não deixasses o auto-rádio no 127, que a gente não te roubava a cassete!”. Cobretti gaba-se das suas proezas, mas reconhece que teve uma papoila da sorte consigo.

Do bloco C escapam os presos, ajudados por dois dos grandes do cavalo, Filas Lynott e Boinas Scott. A confluência de AC/DC e do oi! é aqui evidente.

Para completar a criminalidade, faltou “Há Crime no Ar”, outra grande canção da era pós-Serra.

Antes, falou-se de narrativas; agora, fala-se de diálogos. De entre os vários, houve um que ficou na memória, pela sua particular eloquência:

- “Então, gostaram? Se não gostaram, vão p’ó [sic] caralhooooo!”

- “AUMENTA A DOOOOSE!”

- “Quem é que pagou bilhete, aqui? Quem pagou bilhete que ponha a mão no ar!”

- No melhor espírito garula/troll, meia dúzia de burl-, espectadores, põem a mão no ar –

- “Quem é que pagou bilhete, seus aldrabões, seus vigaristas! Aldrabõõões! Seus mentirosoooos!” – Cobretti a dar uma de Vasco Santana n’ ”A Canção de Lisboa”. E continua:

- “Escumalha! Não valem nada! Seus desgraçados!”

- “Vai para o caralho!”

- “NÃO VALEM NADA!”

Assim foi introduzida a futilidade e niilismo da vida humana, de se ser “Só Mais Um na Multidão” – directa ao assunto. Depois desta, houve quem duvidasse dos atributos faciais e das capacidades do Cobretti como traficante, incluindo ele próprio.

Como os garulas gostam de bola, de droga e de pachacha, Deus Nosso Senhor Diego Maradona fez uma aparição na já encharcada capa de um 78 rotações da banda sonora desses vultos cinematográficos que foram os “Emanuelle”. Mais um refrão digno de registo: “Diego Armando Maradona, futebol, coca e cona!”.

Dado um concerto de Clockwork Boys ser um evento raro e singular, houve também uma degustação, a cargo do próprio Cobretti (sempre ele). De quê? De discos de vinil, que os CD são muito mainstream. Degustados, partidos e atirados para o público, tal como uma tesoura. O Bairro Alto está a ficar pouco original em matéria de nomes de restaurantes: ali perto o 100 Maneiras, na Fantasma Lusitano o Sem Maneiras. A Discolecção e o seu mar de pérolas de vinil estiveram para este concerto como os pescadores de Sesimbra e Cascais estiveram para o Peixe em Lisboa.

Se não têm andamento para isto, então não sentem o punk, caros leitores.
Por esta altura, os dois crucifixos já por muitas mãos tinham sido profanados, de tal modo, que seria suficiente para dar o tranglomango a dez Papas e fazer um vade retro à garulada. O que é certo é que os Deuses não proscrevem o garula.

Regresso aos êxitos, desta feita com “Casino”. Não houve mamas do Cais do Sodré, só mesmo coros dos bembados e demais rapaziada. Haja casinos com visão para passar esta jarda em dia de casa cheia!

Para fechar o set principal/começar o encore, o B.P.N. dos garulas: “Ou atiram moedas para o palco ou não há carrossel”; Zé Abutre reforça: “Querem punk rock chunga, é?”

O povo quis, mas não houve moedas para ninguém. Soltou-se novamente a cobra; o Moedas é que podia levar com uma cobra venenosa na tromba, por acaso. Acerto de toda a banda numa versão em tudo superior à do set principal.

Voltaram o HUAMBÓ, os aumentos de dose e os pedidos de álcool. Terminou o barracal com uma sessão de luta livre à moda da Ajuda, com correntes e capas do “Emanuelle” enfiadas em rego alheio. Até a arte Africana sofreu com isso, ainda que todos tenham continuado apreciadores da mesma.

Por esta altura, os discos de vinil estavam mais encharcados em álcool do que muitos dos presentes, o microfone andava em parte incerta e, miraculosamente, nenhuma estatueta Chinesa se partiu.

Inconformismo e iconoclastia. Um napalm sobre todos os dogmas e preconceitos do lixo em que se tornou o punk um pouco por todo o lado e em especial neste país. Faltaram algumas canções, incluindo um cover de Deus Nosso Senhor G.G. Allin (aparecido no fundo de um garrafão no concerto de 2006, na véspera da véspera de Natal, 23 de Dezembro), mas, como se sabe, não se pode agradar a todos.

Um vocalista que foi o condutor do cabedal, da bandana e dos óculos à surfista dos ácidos de um camião T.I.R. desgovernado cheio de T.N.T., com uma banda que foi um motor do rebentamento em cheio nas ventas dos maledicentes.

Se uns números mais acima, naquela mesma rua, senhores de avental levam a cabo certas práticas mais ocultas, no 13 da Rua do Grémio Lusitano senhores e senhoras de bandana, suspensórios ou t-shirts de bandas praticam as artes e ciências do que é alternativo. Neste caso, o número 13 é de boa cepa.

Com efeito, mais vale ser de culto e ter sempre algo para dizer, do que andar a editar lixo atrás de lixo, a destruir toda uma carreira ou todo um mito. Este texto foi escrito ao som da gravação destes dois concertos, mas também ao som de Neil Young, e das suas (entretanto tornadas cliché por inúmeros e-mails e pseudo-citações nas redes sociais, por gente que provavelmente nunca o ouviu) sábias palavras:

It’s better to burn out, than to fade away/ It’s better to burn out, than it is to rust/ Hey hey, my my, rock’n’roll can never die/ There’s more to the picture than meets the eye.

Mais vale rebentar a sério ocasionalmente, como os Clockwork Boys, do que andar a definhar e a destilar merda, como a maior parte do que para aí anda, a tocar em casas sem memória, a editar material sem qualidade, divulgado por quem pouco sabe e pouco se actualizou.

Consta que o concerto acabou com intervenção policial. Um final punk com chave de ouro (falsificado) para uma noite de luxo; como outro dos grandes disse: o concerto mais punk que a Fantasma Lusitano viu até hoje.

O barracal foi prometido, o barracal foi cumprido. Contra factos não há argumentos e quem dera ao Relvas e demais cambada cumprir assim e ter credenciais destas. Quem nunca provou uma noite destas e preferiu a mediocridade de uma falsa estabilidade e normalidade só pode ser objecto de pena de quem nestes meios se movimenta.

Os Clockwork Boys são uma banda diferente, perigosa para o status quo do punk, ou melhor, para quem se arroga de ser o detentor da verdade. O seu material não soa ao mesmo, fruto de várias misturas diferentes, o vocalista não se baseia nas referências gastas do costume, o guitarrista sabe o que faz e, tal como o dono do microfone, também se tenta demarcar dos demais; a nova secção de ritmo está no espírito da banda, completando o quarteto e ajudando a formar a actual sonoridade que o caracteriza. Assim, vale sempre a pena.

Tal como o anterior concerto em solo lisboeta, também este fez história. Este humilde escriba só espera que o próximo não tarde tanto tempo.

Tenho escrito,

J.V.R./Zé Canivetes

Manager burlão, letrista de ocasião e baterista do senão

19 de Abril de 2013
Rock das Cadeias: O que a verdadeira "imprensa" escreveu sobre o concerto dos Cavalaria 77/ Clockwork Boys na associação Fantasma Lusitano.
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