sexta-feira, fevereiro 06, 2009

Epopeia de Rock’n’Roll



Aos trinta dias do mês de Janeiro de 2009, não foram apenas a chuva e o vento que cobriram Lisboa, pairou também uma névoa de amplificação sonora e de história recente da música popular. Falamos dos concertos dos Stranglers, dos Portugueses Wraygunn e dos Kaiser Chiefs, Britânicos, tal como os Stranglers. Por entre a veterania de sexta-feira e a folia de domingo, muito se passou nos três dias, na Aula Magna e no Coliseu dos Recreios. Encontraram-se boas casas e actuações e público condizentes com a ocasião.
Os primeiros dispensam apresentações, são uma banda veterana do advento do punk no Reino Unido, tendo feito a ponte para o pós-punk. Apresentaram-se já por diversas vezes em Portugal, nos anos 70, com rixas à mistura e em Vilar de Mouros, ainda com o fundador Hugh Cornwell, guitarrista e vocalista. A única rixa que ocorreu a partir das 21h45 na Aula Magna foi a energia emanada do palco, começando a carga do grupo de Guildford com “(Get a) Grip (on Yourself)”, representado por Baz Warne, Dave Greenfield, Jean-Jacques Burnel e Ian Barnard, técnico de bateria que substituiu o baterista Jet Black, o vetusto membro que conta já 70 anos de idade e que não se pôde deslocar a Lisboa.
Eis que ao fim de três faixas Warne resolve comparar a Aula Magna ao edifício das Nações Unidas e a uma sala de estar e convida os espectadores das doutorais do anfiteatro a quebrarem barreiras de preços de bilhetes e a deslocarem-se para a zona das doutorais, onde pediu a que todos se levantassem para haver um ambiente digno de uma “fookin’ gig”. Após o apelo, deu-se uma gloriosa revolução na Aula Magna, com o ambiente a revelar-se frenético, mesmo entre os mais velhos. Sucedem-se os êxitos, com as óbvias “Golden Brown” e “Hanging Around”, com algum público aos saltos, contrastando com a indumentária sóbria da banda, toda ela de preto. Mais clássicos nos dois encores: “Something Better Change” e no último encore “No More Heroes”, evocando-se Trotsky, Lenny Bruce e Sancho Pança. E assim acabou o concerto em que alguns pais levaram os filhos.
Na noite seguinte, foi a vez dos Wraygunn e de alguns filhos levarem os pais. Bilhetes gratuitos para estudantes, preços convidativos e a expectativa de um bom concerto, dado que os Wraygunn iriam gravar um DVD do concerto, selaram as preferências de quem foi. A banda de Paulo Furtado, também conhecido como Legendary Tigerman e ex-membro dos Tédio Boys, fez jus às diversas honrarias atribuídas, acompanhada nalgumas músicas pelo Faith Gospel Choir e pelo vocalista dos Sean Riley & The Slowriders, em boa companhia, portanto. E o vendaval do exterior passou para o interior da Aula Magna.
Um começo em jeito de calmaria, com “Just a Gambling Man”, foi enganador. A tormenta começou quando Furtado ordenou ao público que se levantasse e reunisse junto ao palco, o que tardou dado o zelo da segurança, que todavia não impediu que muitos descessem do anfiteatro e seguissem o circo e desfile de personagens de bares, cabarets e burlesco, sendo a Aula Magna um autêntico “saloon”. Tudo isto com direito ao inefável mosh, muitos saltos e alguns mais afoitos surfaram pela multidão, inédito naquela sala. As cadeiras eram já um empecilho e Furtado tratou até de retirar uma da frente do público e colocá-la em palco, numa sucessão de saltos pelo amplificador e pela obra da banda. O álbum “Shangri-La”, que deu o mote à digressão aqui encerrada, foi acompanhado por um toque de classe, uma óptima versão de “You Really Got Me”, dos Kinks. Houve ainda tempo para Furtado experimentar acrobacias (falhadas) com maracas e para deambular pelo público, subindo a sala até aos camarotes, onde continuou a sua noite triunfante, sempre a cantarolar. Actuação encerrada com “Love Letters from a Muthafucka” e o enésimo salto da noite, em cima da guitarra, oferecida a uma espectadora. Finda a tempestade musical, venha a meteorológica.
Às Portas de Santo Antão vieram parar os Kaiser Chiefs, acompanhados pelos Dananananaykroyd. O ambiente era o costumeiro para o Coliseu: convívio nas esplanadas e os convivas à porta antes do grande concerto do fim-de-semana. Sala praticamente lotada e a expectativa de como seria o primeiro espectáculo em nome próprio dos rapazes de Leeds.
Às 20h59, desembocam no palco os Dananananaykroyd. Com seis membros e duas baterias, o colectivo de Glasgow apresentou-se como manta de retalhos do rock alternativo, ouvindo-se um pouco de Fugazi, de Devo e berraria ao microfone. Comunicativos, energéticos e visivelmente entusiasmados, a meio da sua apresentação resolveram entrar pelo meio do público e, em vez da “Wall of Death” metaleira, pedir uma “Wall of Hugs”, cujo efeito mais parecia uma manifestação religiosa pós-missa, isto numa das catedrais Portuguesas do rock. Um rico aquecimento para o que aí viria.
Com Kinks e Clash no P.A. chegou-se aos Kaiser Chiefs, que entenderam por bem incendiar a sala com “Everyday I Love You Less and Less” logo na segunda faixa, dando o público grande réplica. O público tinha a lição bem estudada e não se acanhou, dançou e saltou como se a sua vida dependesse disso, tremendo a madeira do estrado e das bancadas do recinto. A poderosa marcha triunfal dos Kaiser Chiefs continuou, havendo lugar para Ricky Wilson, vocalista, actuar junto do público, triunfalmente que nem Guilherme o Conquistador e uns inusitados votos de parabéns a um membro da “road crew” da banda e trocadilhos de género com a palavra “obrigado”.
O saldo era já extremamente positivo, animado por coros de público em brasa, com “Ruby” e na dupla “Never Miss a Beat” e “I Predict a Riot”. Pouco depois acabava o “set” principal e logo a seguir um encore, para selar a noite e fechar a noite com “Oh My God”, que teve direito a improviso. O público estava rendido, a banda também e acabou este triunvirato de grandes concertos da mesma forma como começou: com Stranglers no P.A. do Coliseu de Lisboa. Uma nota de apreço para os Dananananaykroyd, que conviveram com os fãs e deram autógrafos na banca de material, esperemos que voltem depressa e como cabeças-de-cartaz.
E assim, por entre as tormentas do mau tempo se percorreu uma epopeia de Rock’n’Roll, que ao terceiro dia continuava vivo e de boa saúde.



J. Canivetes aka Dr. Diabo


Publicado no jornal Semanário de 6 de Fevereiro de 2009




Rock das Cadeias: Epopeia de Rock’n’Roll
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